O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), principal órgão nacional do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, no uso de suas atribuições legais de deliberar e fiscalizar as políticas nacionais para a infância e juventude, reunido em sua 175º Assembléia Ordinária, aprova o presente parecer contrário ao procedimento denominado Toque de Recolher - proibição de circulação de crianças e adolescentes nas ruas no período noturno-, adotado em algumas cidades do País, por meio de portarias de Juízes da Infância e Juventude.
- As portarias judiciais não podem contrariar princípios constitucionais e legais, como o direito à liberdade, previsto nos artigos 5 e 227 da Constituição Federal Brasileira, e nos artigos 4 e 16 do ECA - direito à liberdade, incluindo o direito de ir, vir e estar em espaços comunitários;
- Os artigos 145 a 149 do ECA dispõem sobre as competências e as atribuições das Varas da Infância e Juventude. Os artigos citados não prevêem a restrição do direito à liberdade de crianças e adolescentes de forma genérica, e sim restrições de entrada e permanência em certos locais e estabelecimentos, que devem ser decididas caso a caso, de forma fundamentada, conforme o artigo 149;
- O procedimento contraria a Doutrina da Proteção Integral, da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, em vigor no Brasil por meio da Lei 8.069 de 1990 (ECA) e a própria Constituição Federal Brasileira, tendo em vista a violação do direito à liberdade. A apreensão de crianças e adolescentes está em desconformidade com os requisitos legais por submeter crianças e adolescentes a constrangimento, vexame e humilhação (arts. 5 e 227 da CF e arts. 4, 15, 16, 106, 230 e 232 do ECA). Volta-se a época em que crianças e adolescentes eram tratados como “objetos de intervenção do estado” e não como “sujeitos de direitos”. A medida significa um retrocesso, tendo em vista que nos remete à Doutrina da Situação Irregular do revogado Código de Menores e a procedimentos abusivos como a “Carrocinha de Menores” e outras atuações meramente repressivas executadas por Comissariados e Juizados de Menores;
- Em muitos casos, a atuação dos órgãos envolvidos no Toque de Recolher denota caráter de limpeza social, perseguição e criminalização de crianças e adolescentes, sob o viés da suposta proteção;
- Não se verifica o mesmo empenho das autoridades envolvidas na decretação da medida aludida em suscitar a responsabilidade da Família, do Estado e da Sociedade em garantir os direitos da criança e do adolescente, conforme dispõe o ECA. Inclusive, a própria legislação brasileira já prevê a responsabilização de pais que não cumprem seus deveres, assim como dos agentes públicos e da própria sociedade em geral. No mesmo sentido, por que as autoridades envolvidas no Toque de Recolher não buscam punir os comerciantes que fornecem bebidas alcoólicas para crianças e adolescentes ou que franqueiam a entrada de adolescentes em casas noturnas ou de jogos, ou qualquer adulto que explore crianças e adolescentes?
- Nenhuma criança ou adolescente deve ficar em situação de abandono nas ruas, em horário nenhum, não só durante as noites. Para casos como esses, assim como para outras situações de risco, o ECA prevê medidas de proteção (arts. 98 e 101) para crianças, e adolescentes e medidas pertinentes aos pais ou responsáveis (art. 129);
- Os Conselhos Tutelares são órgãos de proteção e defesa de direitos de crianças e adolescentes (arts. 131 a 136 do ECA) e não de repressão ou punição. O Fórum Colegiado Nacional dos Conselhos Tutelares já se manifestou contrariamente ao Toque de Recolher;
- A polícia não deve ser empregada em ações visando o recolhimento de crianças e adolescentes. Nesse sentido, o Estatuto e a normativa construída nos últimos 19 anos prevêem a necessidade de programas de acolhimento com educadores sociais que façam a abordagem de crianças e adolescentes que se encontrem em situação de rua e/ou de risco. Muitas vezes, os abusos sofridos nas próprias casas geram a ida de crianças e adolescentes para as ruas. Nesses casos, a solução também não é o toque de recolher. O adequado é a atuação dos órgãos e programas de proteção, acolhimento e atendimento às crianças, aos adolescentes e às famílias. Devemos destacar que, diante de situações de risco em que se encontrem crianças e adolescentes, qualquer pessoa da sociedade pode e deve acionar os programas de proteção e/ou os Conselhos Tutelares, assim como todos da sociedade têm o dever de agir, conforme suas possibilidades, visando prevenir ou erradicar as denominadas situações de risco;
- O procedimento do Toque de Recolher contraria o direito à convivência familiar e comunitária, restringindo direitos também de adolescentes que, por exemplo, estudam à noite, frequentam clubes, cursos, casas de amigos e festas comunitárias;
- Conforme os motivos acima elencados, o Toque de Recolher contraria o ECA e a Constituição Federal. É uma medida paliativa e ilusória, que objetiva esconder os problemas no lugar de resolvê-los. As medidas e programas de acolhimento, atendimento e proteção integral estão previstas no ECA, sendo necessário que o Poder Executivo implemente os programas; que o Judiciário obrigue a implantação e monitore a execução e que o Legislativo garanta orçamentos e fiscalize a gestão, em inteiro cumprimento às competências e atribuições inerentes aos citados Poderes.
Nesses termos, o Conanda recomenda:
- Que todos os municípios tenham programas com educadores sociais que possam fazer a abordagem de crianças e adolescentes que se encontrem em situações de risco, em qualquer horário do dia ou da noite, visando os encaminhamentos e atendimentos especializados previstos na Lei;
- Que todos os Municípios, Estados e União fortaleçam as redes de proteção social e o Sistema de Garantia de Direitos, incluindo Conselhos Municipais da Criança e do Adolescente, Conselhos Tutelares, Varas da Infância e Juventude, promotorias e delegacias especializadas;
- Que o Conselho Nacional de Justiça inclua em sua pauta de discussões o Toque de Recolher, objetivando orientar as Varas da Infância e Juventude sobre a ilegalidade e inconstitucionalidade do procedimento.
Brasília, 18 de junho de 2009
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
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